Angelica Liddell
Aos filhos que não vou ter.
Não quero ter filhos.
Não quero ir mais longe.
Sou uma epidemia de ressentimento
Não quero ter filhos.
É a minha maneira de protestar. O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo renuncia à fertilidade.
O meu corpo é o meu protesto contra a sociedade, contra a injustiça, contra o
linchamento, contra a guerra.
O meu corpo é a crítica e o compromisso com a dor humana.
Quero que o meu corpo seja estéril como o meu sofrimento.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo é o meu pessimismo. Graças ao pessimismo posso fazer-me perguntas.
Alguém tem de ficar em metade dos homens fazendo-se perguntas, alguém tem de
ficar em metade da esperança fazendo-se perguntas. Alguém tem de ficar como um
idiota. Alguém tem de ficar como excremento e fracassar definitivamente. A
ausência de filhos ajuda-me a ser excremento e a fracassar. Os adultos saltam por
cima do meu ventre agitando os seus filhos como bandeiras como se o mal tivesse
desaparecido do mundo, como se a inteligência tivesse finalmente triunfado sobre o
mundo, como se fossem insígnias de um mundo melhor. Não confio num futuro
melhor. As famílias comportam-se com soberba, pensando que a sua prole vai ser
diferente, que os seus filhos nunca irão trair como nós fomos traídos, que os seus
filhos nunca danarão nem serão danados, que os reveses da vida sem dúvida serão
menores e que os seus filhos jamais serão culpados seja do que for.
O meu corpo é o meu protesto contra as grandes esperanças dos pais, contra as
grandes pretensões dos pais.
Não quero passar por esse estado de estupidez transitória.
Não quero que o meu ressentimento se interrompa.
Não quero deixar de pensar na injustiça.
Não seria justo para os excluídos que deixasse de pensar na injustiça, que deixasse
de condenar os privilegiados.
Porém, não conheci nenhuma criança que se convertesse num bom adulto. As
crianças não se convertem em bons adultos. Eu não sou uma boa adulta. A bondade
não existe. Sou má, muito má.
Talvez essa seja a razão por que não quero ser mãe.
Talvez a nós, mulheres más, nos aconteça isso, não queremos ser mães.
Nós, as mulheres más, sem instinto maternal, pagamos o tributo de morrer sozinhas,
podres, sem alegria, em frente ao televisor, em frente ao espanto, secas, rodeadas
de moscas de diferentes tamanhos.
A nós, mulheres más, só nos pode acontecer a morte.
Acho bem.
Fui criança. Mas não me tornei uma boa adulta.
O papel do homem no mundo é absurdo. Navegamos de tara em tara
Quando me imagino a parir apenas consigo ver, assomando entre as minhas pernas, a
cabeça grotesca de um monstro já fatigado pela imundície do universo, pelo
inefável, pela mesquinhez.
O meu corpo é o meu protesto.
Não quero trazer nada ao mundo excepto o meu profundo horror pelo mundo. Depois
dos desastres do século XX apenas posso sentir horror. Depois de tamanha exibição do
mal, o homem já não pode redimir-se. Quem pode voltar a amar os homens? Quem
pode voltar a cantar em louvor dos homens? Alguém disse que depois dos horrores do
século XX não era possível continuar a escrever. A palavra tinha-se tornado absurda,
insuficiente. Os filhos são como a palavra, insuficientes. Seria bom para a minha
mente aceitar a insuficiência da palavra e do homem. Mas dentro de mim há um
qualquer crocodilo que me impede de aceitar isso. Cada vez suporto menos a
injustiça, cada vez suporto menos a maldade. O mundo está alicerçado na injustiça e
no mal.
Apenas consigo protestar.
O meu corpo é o meu protesto.
Quero morrer sem ninguém, sem deixar nada para trás. É a minha maneira de me
unir aos que foram exterminados, aos que sofreram sem limite.
Não quero esperança.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo é um exemplo para suicidas, um exemplo para assassinos, um exemplo
para todos os que se desprezam a si próprios.
Meu maldito corpo.
Minha decisão anormal.
Chega uma altura em que a sociedade se excita, se impacienta e procria, procria
porque sim, procria. Que motivos tem?
Pergunto-me: que motivos tem?
Porém, a minha decisão é anormal.
Perdão pela violência.
A minha violência verbal é a minha luta contra a violência real.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu protesto contra os vestidos pré-mãmã.
O meu corpo, voluntariamente estéril, é o meu inconformismo.
O meu corpo é a minha falta de adaptação.
As grandes esperanças dos meus pais destruíram as minhas próprias esperanças.
O meu corpo é o meu protesto contra as grandes esperanças dos meus pais, contra as
grandes e estúpidas esperanças do mundo.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo é a minha acção.
A minha decisão anormal é a minha acção.
Em resumo, a minha vida é a minha acção.
Só quero ser filha.
Comigo termina a tirania do sangue.
Não quero constituir família.
Nunca acreditaria numa instituição que é fomentada, elogiada, aclamada,
inclusivamente premiada pelo poder. Não confio em todos esses governantes que se
fazem fotografar com as famílias.
A fotografia de família está sempre em cima das secretárias dos presidentes, em
moldura de prata, a moldura é caríssima, a família merece a moldura mais cara, o
presidente merece a família mais bonita, mais sorridente, mais feliz e mais cara. A
família é o mais importante. A família é o mais importante. Sem família ninguém
alcança o poder. O poder e a família, sempre unidos. Repugna-me.
As fotos de família lembram-me os arrepiantes cromos paradisíacos que os padres te
mostram ao mesmo tempo que te cospem orações nas orelhas.
A família e o poder.
A família e a religião.
Não posso confiar numa coisa imposta pelo poder. Não posso confiar numa coisa
imposta pela religião.
Nem que fosse apenas por esse motivo devíamos negar-nos a ter filhos.
Celine disse: “ Quando alguém ama os grandes da terra, está pronto a ser convertido
em carne para canhão. Pelo afecto se começa. Os que estão no alto apenas
conseguem pensar no povo por interesse ou por sadismo”
Concordo.
Também disse: “Vivam os loucos e os cobardes!”
Também concordo.
Não me sinto capaz de agradar aos poderosos, aos privilegiados. Se lhes agrado estou
a alimentar a obesidade e o conformismo de uma sociedade idiota, delicodoce.
É necessário que haja alguém que não queira ter filhos. É necessário para
desestabilizar as consciências. É uma forma de fazer justiça.
O meu corpo é o meu protesto.
É a minha forma de fazer justiça.
O meu corpo é o meu protesto.
Não quero ter filhos.
Quero ser pobre.
Não ter filhos é uma maneira de ser pobre.
Os pobres são essas pessoas cuja morte não interessa a ninguém.
Essa é a morte que eu desejo.
Não quero ter filhos.
É uma forma de ser um pouco mais pobre.
Às vezes penso que não depende de mim.
Estou possessa de uma raiva inidentificável que me obriga a enlamear-me
continuamente na dor.
De onde vem essa raiva?
A quem pertence a vontade do enfermo?
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo protesta contra a minha geração.
A fraude da minha geração.
Criaram uma sociedade classista, orgulhosa, ambiciosa e brilhante
Com o suor das suas testas, brilhante.
Com o suor das suas testas, ambiciosa.
Com o suor das suas testas, orgulhosa.
Com o suor das suas testas, classista.
Apenas procuram a comodidade.
Imitam os pequenos ricos. Dizem o contrário, são muito progressistas, mas
comportam-se como qualquer um da classe média.
Codiciosos, complacentes, comodistas, instalados.
Sim, reproduzem-se na comodidade.
E isso debilita as suas mentes.
As suas cabeças estão repletas de comodidade.
Pensam que as suas consciências são correctas, mas não o são. No fundo, a sua
correcção é um tópico que lhes permite viver sem qualquer sentimento de culpa.
O meu corpo é o meu protesto.
Sou uma estúpida.
Sou aquela que se equivoca por pretender sentir-se perdedora e ridiculamente
heróica. Acuso-me de petulância. Sou petulante por andar ao contrário do mundo.
Ainda que talvez faça parte da sua inércia. Não gosto de pensar assim, mas a raiva
obriga-me a isso.
Uma pobre ressentida com aspirações artísticas. Eis o que sou.
Não quero salvar-me.
Sou a pior. A pior.
Protesto com o meu corpo.
Sou um caixote de lixo cor-de-rosa.
A imundície da minha carne faz com que qualquer um que se aproxime se torne
escrupuloso.
Estou consumida pela verdade.
A guerra envelhece-me
Observo a minha existência como se a minha existência fosse a de uma mosca.
Pertenço à fauna cadavérica.
Em que momento da decomposição apareço?
Há quantos dias está morto o cadáver?
O meu corpo é o protesto pelos cadáveres inocentes.
Não quero ter filhos.
Não quero mais funerais.
Quem é o responsável pela vontade de morrer de uma mulher?
A injustiça coloca espadas na cama da suicida.
Embora o meu coração tenha parado, o sangue continua a fluir pelo meu corpo para
continuar a protestar.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo é a minha acção.
O meu corpo é a minha obra de arte.
A minha decisão é a minha obra de arte.
Não ter filhos é a minha obra de arte.
Não fazendo filhos, faço arte.
O cheiro a café misturado com o cheiro a peixe faz-me vomitar.
Relaciono esse cheiro com a maternidade.
E ao mesmo tempo relaciono-o com a morte.
E penso: na família tudo acontece no escuro. Não suportaria nem mais uma grama de
hipocrisia.
Porque na família amamos mas também somos obrigados a amar.
Este facto origina relações tenebrosas, sem bases, que desembocam em camuflagens
dolorosas.
Na família tudo acontece na escuridão.
O meu corpo é o meu protesto
Protesto contra a ausência de paixões.
Protesto contra a fraqueza e a sensatez.
Protesto contra o uso do dinheiro.
As famílias recém-constituídas trabalham para poderem comprar arcas frigoríficas
maiores, carros maiores, férias mais caras porém mais insípidas.
As famílias trabalham para não perderem nem uma grama do prestígio social.
As famílias trabalham para não perderem nem uma grama de segurança.
Protesto contra o prestígio social e protesto contra a segurança.
Aqui está o meu corpo protestando, sem filhos.
As famílias trabalham arduamente para parecerem ficarem como os ricos.
Aspiram ao bem-estar total.
Em nome dos seus filhos aspiram ao bem-estar total, quer dizer, ao supérfluo.
Perderam o sentido de bem-estar.
O meu corpo protesta contra o bem-estar.
As famílias trabalham arduamente.
Aspiram à calma total.
Protesto contra a calma.
O meu corpo protesta contra a calma.
O bem-estar, a segurança, a calma.
Tudo o que os alisa.
Nada de paixões. Nada de excessos.
Trabalham para pagar o ginásio.
Para pagar a protecção enquanto trabalham.
Enquanto trabalham para pagar a protecção e o seu eterno descanso.
E o seu eterno sacrifício.
Não posso identificar-me com eles.
Não posso identificar-me com um plano de pensões.
Não.
A minha vida é patética e adolescente.
Sou uma merda.
Mas não quero ser como eles.
Tanto faz. Não é possível fazer marcha atrás.
A minha geração move-se em direcção à estabilidade, ao plano de pensões, ao
restaurante caro, ao carrinho cheio de compras, move-se em direcção a um consumo
sem limites.
Por detrás das suas carteiras são uma massa flácida e sem forma.
Eu não sei para onde estou a ir.
Em qualquer caso, não ter filhos dá-me força. A minha decisão dá-me força.
A minha geração move-se tanto que não tem tempo para pensar.
Utilizam quatro tópicos para pensar e vão para a cama. Tão seguros, tão estáveis.
O meu corpo protesta contra a estabilidade.
Há demasiados funcionários.
Protesto contra os funcionários.
E os funcionários protestam porque o salário não chega para comprarem um carro
mais caro, um queijo mais caro, um restaurante mais caro, uns calçõezinhos mais
caros, uma merda mais cara. Protestam para mudar os azulejos das paredes do
quarto de banho. Protestam por isso, porque precisam de encher o carrinho de
compras até à insuportabilidade.
O meu corpo protesta contra os funcionários.
A economia determina as relações afectivas.
A economia determina as minhas acções.
O meu corpo é a minha acção.
Não tenho medo da pobreza.
A minha economia determina o meu protesto.
É impossível uma relação com aqueles que nunca tiveram na vida consciência de
ruína e de pobreza.
Impossível.
A ausência de consciência de ruína e de pobreza defrauda-me completamente.
Por isso protesto. O meu corpo é o meu protesto.
A pobreza é tão indesejável como a mediania.
A raiva faz-me delirar.
Que fazer para evitar esta raiva aqui dentro?
Só protesto.
O meu corpo é o meu protesto
O meu corpo é a minha acção.
A minha vida é a minha acção.
Não quero ter filhos.
Porquê?
Talvez por raiva, esta raiva, aqui dentro.
Está sempre prestes a começar uma guerra.
O mundo é maravilhoso.
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