O Corpo, observador implicado.
Quanto mais eu sinta
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro afora.
Fernando Pessoa
Essa poesia de Fernando Pessoa, nos revela de modo sutil um estado de corpo disponível e extensivo. Um estado de ser de corpo que, sem revelar a intricada e complexa rede de conexão que borbulham entre o mundo de dentro e o mundo de fora do corpo, levam-nos a imaginar e a transitar por esses mundos possíveis onde, o corpo, sempre será um mediador implicado. Corpomídia (GREINER e KATZ, 2005), sujeito biologicamente e culturalmente implicado, formado com por uma coleção de informações que as forças dos processos evolutivos impulsionaram e fizeram emergir. Um sistema vivo sempre em processo e dependente da mediação da percepção apto a construir-se e ao ambiente, no incessante fluxo de trocas entre ambos. As regularidades ambientais com as quais o corpo lida resultam de uma história co-evolutiva. Somos dotados de um sistema de estruturas complexas (perceptivas, sensórias, sensoriomotoras), para nos dar uma leitura precisa sobre os conseqüentes que temos diante de nós (Pinker, 2002). A nossa mente, nos mantém em contato com aspectos da realidade, objetos, animais, pessoas, com as quais os nossos ancestrais lidaram durante milhões de anos.
Através da nossa percepção, não apenas podemos ver os movimentos das pessoas e objetos, mas também podemos fazer suposições de suas intenções pelos seus modos de se aproximar, se distanciar, de olhar, de gesticular, de espetacularizar suas vidas (modos de vestir, de ir a igreja, as festas, ao cinema, ao dentista, a encontros na praça, ou atividades de lazer), se compartilham ou se atrapalham as outras pessoas, tudo isso dentre as infinitas possibilidades que se dispõem. Implica dizer que o lugar do corpo no mundo é o lugar que ele constrói como corpo vivo em cada momento presente, transformando e sendo transformado pelas experiências vivificadas. Nesse vai e vem dos modos de pensar, agir e espetacularizar a vida somos estados de corpos transitórios (DAMÁSIO, 2002, LLINÁS, 2003, CHURCHLAND, 2004, KATZ, 2005) em contínuo fluxo, construído e fruto das inter-relações com o ambiente, com a cultura, com as nossas idéias e as idéias do outro, do corpo do outro, das coisas imbricadas, das fronteiras que se afrouxam intensificando os diálogos culturais. Assim, sutilmente, nos misturamos e somos atravessados uns pelos outros, infiltramos infiltrados as brechas que se abrem a cada encontro inesperado, desejado, abandonado, não almejado.
Com esse olhar expandido e extensivo sobre o corpo e o ambiente nos encontramos no Euphorico a Céu Aberto, propondo construir danças a partir da observação da ambiência da área externa do Solar Boa Vista. Um ambiente rico de possibilidades de intervenções, com cantos, recantos e lugares divididos, recortados, delimitados entre as mesas de jogos, platôs, quadras de jogos, teatro de arena e seus transeuntes locais. Moradores, visitantes, homens e meninos em sua maioria habitam o lugar. A figura feminina não é presente, entretanto, de vez em quando, as vemos passar como uma transeunte, indo ou voltando da escola, do trabalho, ou participando de alguma atividade no teatro. No dia a dia da praça, suas presenças não ocupam o espaço, deixam apenas rastros, e bem apagados.
Jorge Albuquerque(2006), explica que vivemos um mundo de possibilidades e de processos imprevisíveis. Tais processos se resvalam, espalham-se, imbricam-se, evitam-se, e, numa necessidade maior, atraem-se articulando-se conectivamente para que o alvo almejado seja alcançado e se concretize da melhor maneira possível, favorecendo a todos no entorno como uma estratégia de sobrevivência. Assim, e nesse modo complexo de sentir, perceber o mundo, a proposta de intervenção Euphorico a Céu Aberto – 2009, deságua na ambiência do Solar Boa Vista, para criar estratégias para dialogar com o ambiente e trocar informações através da dança.
O nosso desafio nessa intervenção/invasão cuidadosa e respeitosa em relação as regras do lugar, abarca uma questão crucial, que é saber como se articular nesse ambiente para construir, a partir de observações locais, performances aproximativa dos acontecimentos, e apresentá-las a comunidade. Entendendo que o observador está implicado no ambiente, e, portanto, sua presença por si só já interfere nos acontecimentos e predispõem aos outros corpos, uma resposta que se conecta as nossas presenças, o Grupo X de Improvisação em Dança e Cia. Artmacadam, já se apresentavam durante os três dias de intervenções com um comportamento e figurino atípico do lugar, e esse jeito de se apresentar chamou bastante a atenção, e , de certo modo, facilitou, permitiu a nossa aproximação e a realização das atividades.
Diálogos corporais se estabeleceram contextualizados com o ambiente contaminando a tudo e a todos. Novas rotas foram configuradas, muitas vezes inesperadas e surpreendentes, como a participação frouxa das crianças locais, a indiferença disfarçadas dos homens que jogavam, através das indiretas que verbalizavam como que indicando que estavam ali, implicados e perceptivos, mesmo sem mexer o corpo do lugar. A presença inesperada das Vozes do Engenho contaminando os corpos do Grupo Poéticas da Diferença. A informação contaminando a tudo e a todos, em tempo, e ao mesmo tempo, mas, totalmente pertinentes, mesmo que a princípio o corpo não se dê conta, mas brotavam nos sorrisos escancarados em suas faces. A coerência nos modos de tecer relações, de criar as possibilidades diante do emaranhado de informações recorrentes que se misturavam e se imbricavam, conectava os fios que teciam sutilmente uma rede de entendimentos múltipos nos corpos dos pesquisadores possibilitando a emergência da dança. A dramaturgia da dança revelada nos deslocamentos e nas combinações possíveis do corpo, da força dos gestos, dos acordos e ajustes entre os corpos no espaço cênico (uma coleção de informações específica) e as informações trazidas pela dança que esse corpo se propõe a dançar (KATZ,2005). Como no processo biológico de desenvolvimento que é o mesmo para qualquer corpo, a contaminação entre informação e corpo é imediata, mas cada tipo de informação tem seu tempo para se transformar em corpo e cada corpo a vivencia de acordo com as suas possibilidades fisiológicas, características pessoais e num dialogo constante com o entorno. Trazendo o pensamento de Pinker (2004), a nossa natureza é um espaço inilimitável , no qual a inteligência se move num espaço sem fim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário